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Crónica de Carlos Leitão

O Honda Prelude de Carlos do Carmo

Seg, 11/01/2021 - 17:45

Mais do que o espetáculo, a arte. E charme. Tanto charme que Lisboa cresceu ainda mais com ele e aprendeu a gostar de si própria. E eu também.

Mais do que o espetáculo, a arte. E charme. Tanto charme que Lisboa cresceu ainda mais com ele e aprendeu a gostar de si própria. E eu também.

Bem para lá de 20 anos, algures entre o Dubai e Al Ain, o Honda Prelude vermelho do meu saudoso amigo Anastácio encostava na berma para deixar passar uma tempestade de areia. Um conjunto de músicos predestinados abriu alas para o que Carlos do Carmo consumaria segundos depois: talvez o primeiro dos melhores discos da minha vida. Enquanto aguardava pelo fim da tormenta, Um Homem na Cidade, na aridez arábica, irrompeu e espicaçou-me, e uma nova realidade nascera das surpreendentes colunas daquele automóvel.

Dela, esclareceu-se o que o meu pai tentara explicar-me sempre. A dicção perfeita, a preocupação pela língua portuguesa, o recato, entre tantas outras qualidades, surgiam-me como finalmente belas. Carlos do Carmo trouxe a confirmação da elevação, de como um artista o pode (e deve) ser, sem malabarismo e aldrabice. Em lugar desses, o charme natural, a sensibilidade, o arrojo consciente, o respeito, os poetas e compositores iluminados, a visão de um país e de um povo que ousou sonhar.

Num meio fadista pouco avezado ao bom trato, Carlos do Carmo foi amado e odiado e, como com todos os grandes, não me lembro de haver meio termo. Eu prefiro a primeira. É onde me situo, sem hesitar. Não lhe descobri em palco as manhas de outros, e, no auge das análises mais ou menos profundas, é isso que conta. O País empobreceu, ao perder um homem que transportou com elegância toda a sua história. E isso, por muito que custe a uns, é para poucos.

A tempestade não passou. Ainda há muita poeira no ar e muita areia nos olhos. Há verdade artística por vislumbrar num tempo que não sabe esperar, e o mundo do showbiz continua a esquecer-se da arte a meio caminho. Carlos do Carmo foi-nos lembrando dos riscos, mantendo a fidelidade, não do meio e dos colegas, mas do povo e da sublimação.

Já não há Hondas Prelude vermelhos por aí, mas o rádio continua a trabalhar…

 

Texto: Carlos Leitão, fadista

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