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Crónica de

No tempo do Archie Bunker

Ter, 09/02/2021 - 16:10

Sou do tempo em que para ver uma série tínhamos de esperar uma semana.

Sou do tempo em que para ver uma série tínhamos de esperar uma semana. A espera era religiosa e contabilizada dia após dia. Não havia cá plataformas nem streamings, nem tão pouco Internet. Se gostávamos, tínhamos de saber esperar, e ponto.

Se hoje temos tendências, “no tempo em que os animais falavam” não havia opção de escolha, quando muito a Vera Roquette dava-nos a escolher entre o Barco do Amor e os 3 Dukes, ou entre Um Anjo na Terra e os Soldados da Fortuna. Nesse longínquo capítulo da história, Balada de Hill Street, Alf, Modelo e Detective, Dallas ou Dempsey & Makepeace eram estrelas das noites semanais, enquanto o terreno se preparava nos finais de tarde dos fins de semana com O Justiceiro ou MacGyver.

As televisões ainda não lutavam por audiências, não havia como se copiarem umas às outras nem nivelar por baixo conteúdos e ideias. Havia a RTP1 e a RTP2 e, com sorte, um vídeo Beta ou VHS. Mais tarde, uma parabólica, e por aí fora.

Aos olhos actuais, soa a miséria. Na minha adolescência, imagine-se, até conseguíamos estar um minuto seguido sem TikTok, e namorar, sem o Skype dos amigos a chamar-nos para a consola, e a deixar o beijo na boca para mais tarde. Fraca concorrência.

Consolava-nos o exulto do episódio que chegara entretanto, uma interminável semana depois. Archie Bunker fazia de Uma Família às Direitas a minha família, e numa realidade que vagarosamente ainda aprendia a ser democrática, a América explicava-nos em sua casa como não o deveríamos ser daí em diante.

Em confinamento, descobri as maravilhas das temporadas em dias, e de despachar séries com velocidade supersónica. Ozark, The Crown, Peaky Blinders, Succession, entre tantas outras, desmascararam a irrealidade do tempo. Depressa, para trás e para a frente, pausa para meter uma bucha, e continuar. Tudo fácil e à distância de um comando de box, mas sem um certo encanto passado.

Aceito e, se for caso disso, até alimento. Mas há sempre um sorriso, não de saudade, mas de uma nostalgia que me prova em cada nova série descoberta que, entre outras coisas deste mundo, afinal também já não sabemos esperar.

 

Texto: Carlos Leitão, Fadista

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