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Crónica de Carlos Leitão

O ateu e o seu Papa

Qui, 25/02/2021 - 16:00

Usa-se o Seu nome com vulgaridade, entre uma ou outra traiçãozita, crucifixos ao peito e missa ao domingo, como “il faut”.

Usa-se o Seu nome com vulgaridade, entre uma ou outra traiçãozita, crucifixos ao peito e missa ao domingo, como “il faut”. Terminam-se as respostas com “graças a Deus” e muitos nem querem que Jesus tenha nascido na Palestina (esse malfado antro de terroristas). Vá lá, na Amadora.

Não nos entendemos (acho eu), mas quando um tipo anda, como agora, mais apertado de ânimos e esperanças, dava jeito. Olhei para o céu e não estava estrelado, sentei-me na Basílica dos Mártires, até Lhe falei, mas nem São Judas Tadeu fez a ponte entre as margens para me acabar com as causas impossíveis.

Não sei se é o pai de Cristo, se veste laranja e é careca, se é hindu ou mostra a luz ao Islão, mas sei que me faria bem ver o caminho nitidamente. Acredito piamente que seja todos eles e todos nós, com clarividência de ateu e desapego das teimosas Leis de Murphy. E no meio de tantas inquietações e perguntas, houve um argentino que despertou paixões cardeais de conclave e veio à Praça de São Pedro dizer que seria o Papa de todos os seres, mesmo dos que ousam não ter em Deus a morada dos seus anseios.

Na fé, Francisco é o melhor exemplo que conheço da doçura no olhar de um avô que nos quer bem, muito maior que a igreja e que a minha ausência. Ouvi-lhe num documentário recente que “um artista é um apóstolo da beleza”, e essa frase não mais me saiu da cabeça. É bonito sentir o deífico a imiscuir-se nas paixões terrenas, e ainda por cima de forma tão poética. Deus ficará, por certo, orgulhoso de tão insigne representante, mesmo que a coisa ande meio escura cá por baixo, e o branco com que Gammarelli veste Francisco não reflicta luz suficiente para todos.

Francisco escreveu uma “Carta aos Artistas” e isso é coisa rara nestas lides plebeias que teimam em puxar ao subsolo tudo o que seja arte e expressão. É homem bom e tem algo que o distingue nas águas turvas onde tantos perdem o pé e a cabeça. O documentário chama-lhe um “Homem de Palavra”. Talvez eu não chegue a Deus, mas a este argentino honestamente simples é-me tão fácil chegar.

A vida faz-se com provações a mais para o tempo que ela tem, e como um dia tudo isto vai mesmo acabar mal, já agora que alguém ajude a facilitar o processo.

Texto: Carlos Leitão, fadista

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